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Os familiares e a doação de órgãos após a morte, por Eudes Quintino

Publicado por
Eudes Quintino

A morte, pelo menos nos últimos tempos em que se quebrou a barreira de resistência a tal tema, passou a frequentar as conversas familiares de forma até natural. Nessa progressão vem se apresentando como uma conceituação diferenciada e tanto progrediu que tangenciou outro tema conexo, que é a doação de órgãos post mortem de parentes, visto que pelo preceito legal, são os únicos legitimados para tal mister.

E é sobre o sentimento altruísta dos familiares, consistente em doar os órgãos e tecidos humanos, que se projeta este artigo.

É muito difícil para o familiar decidir a respeito da doação de órgãos de um ente que faleceu, às vezes prematuramente. Em primeiro lugar, porque nunca pensou sobre tal possibilidade e, em segundo, porque carece de informações a respeito do ato. Na realidade, o sentimento que aflora de imediato é para que fique intocável o cadáver, de tal forma que ele represente sempre a imagem que sempre ostentou. Daí o dilema crucial em autorizar a retirada de órgãos.

Se o familiar, em vida, deixou transparecer que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. Os responsáveis pela autorização não se inibirão e, prontamente, assinarão o termo autorizativo. Do contrário, ocorrerá uma reunião familiar para decidir a respeito da doação. É sempre um momento difícil porque concorre com o evento morte, em que, por ironia, o paciente ainda registra batimento cardíaco, porém com a decretação da morte encefálica. Dá-se a impressão que é um apressamento da morte, uma modalidade de eutanásia. Na verdade, é a oportunidade única para se decidir a respeito da doação, pois o paciente já expirou em razão da falência do tronco cerebral. A vida se esvaiu e no leito há um corpo movido a uma propulsão biológica conduzida, por tempo limitado. A morte determina o divórcio inevitável da pessoa e da sua vida biológica. Morre a pessoa e assume o cadáver.

Nesta modalidade de doação a morte ocorre com a falência da atividade encefálica. Distante já o conceito de que a morte se dava com a parada dos batimentos cardíacos. Os romanos, por suas características sentimentais, cantavam o coração como o símbolo da vida e do amor, enquanto que os gregos, mais racionais, elegiam o cérebro como o administrador geral do corpo humano. E com razão eles. A volição, as ordens, a manipulação de todo sistema nervoso, dos órgãos sensoriais, são ditadas pelo cérebro. Denominavam nous o espírito infinito e independente que representava a inteligência, a mente ou o intelecto, figurando como governador dos seres viventes.

No Brasil, em razão do alto índice de criminalidade urbana, compreendendo aí também as mortes provenientes do trânsito, é representativo o número de casos de morte encefálica, mas é decepcionante o número de doadores. Basta ver que o artigo 4.º da Lei 9.434/97, que trata da doação de órgãos e tecidos humanos, admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, bastando o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. E, quantas pessoas, mal informadas e temerosas, não se declararam doadoras. A Lei 10.211/2001 alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Mas, mesmo assim, a população está carente de informação a respeito. Temos a lei que possibilita a doação dos órgãos, mas seu mecanismo não atingiu o destinatário, muito menos seu espírito de solidariedade.

 

Pois bem. Decretada a morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante, sendo um deles neurologista ou neurocirurgião, é feita a comunicação à Central de Notificação, Captação e Distribuição de Órgãos do Estado, que indicará o nome do receptor, devidamente cadastrado. Tal procedimento, conhecido por transplante ou transplantação é o ato cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador e evita a indicação de beneficiários por parte dos familiares. A doação, em sua essência, é ato que transcende a generosidade humana e pode ocorrer, por ironia do destino, que o órgão venha a ser transplantado em um inimigo do doador.

No caso de morte de jovens se os pais concordarem, ocorrerá a retirada do coração, pâncreas, rins, fígado, pulmões, córnea e outros e a doação será feita a pessoas até então desconhecidas. O ato é nobre e se sustenta como referência de solidariedade a ser seguido. O corpo humano é repositório de órgãos que conseguem realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, uma melhor qualidade de vida. O homem, ser pensante, pode ser lobo do próprio homem, mas o cadáver se apresenta como oferenda a quem necessitar de seus órgãos.

 

Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados.

 

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