A união homossexual, apesar de todos os percalços vencidos, foi ganhando espaço e se aninhando em diversas interpretações jurisprudenciais até ser reconhecida pela Justiça. É certa a afirmativa de que o costume de um povo reluta bastante para aceitar e se adaptar às inovações introduzidas por novas tendências ampliativas da família tradicional. Todo fenômeno social exige o tempo de assimilação, maturação e, posteriormente, aprovação popular e legislativa. Apesar de que, como lembra Tito Lívio, nenhuma lei se adapta igualmente bem a todos.
A legislação brasileira, paulatinamente, vem fincando novas demarcações de conquistas visando conferir aos homossexuais igualdades incondicionais, inclusão, cidadania sem preconceitos e discriminação, quer seja por gênero quer seja por orientação sexual. Criou-se, desta forma, a união homoafetiva, com caráter de entidade familiar e os direitos decorrentes desse vínculo, distanciando-se do conceito primário de união socioafetiva, com o formato de uma sociedade negocial. A família, nos moldes da interpretação atual, apesar das variadas formas de constituição que permitem um alargamento em sua estrutura originária, conserva ainda a formatação de um núcleo doméstico, quer seja no relacionamento de casais heteroafetivos ou homoafetivos, cabendo, desta forma, na conceituação do artigo 226 da Constituição Federal, vez que já se solidificou o entendimento contrário a uma interpretação reducionista, estabelecendo restrições entre as entidades familiares.
Tanto é que a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ, ambas julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceram plena a igualdade de direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos.
Além do que, ainda na mesma linha de pensamento, o STF erigiu a união homoafetiva à categoria de entidade familiar. Tanto é que reconheceu o direito de homossexual à pensão por morte do parceiro. Uma Instrução Normativa do INSS confere tratamento isonômico na sociedade de fato entre heterossexuais com a estabelecida entre homossexuais. A Receita Federal, por sua vez, admitiu ao casal declarar o companheiro como dependente, para fins de dedução do imposto e muitas outras concessões que até então eram privativas do casal heterossexual.
Incontestável que a Lei de Transplantes, antes ainda da vigência do Código Civil, não conferiu legitimidade ao companheiro homossexual para autorizar a doação de órgãos. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. Daí surge a necessidade de se fazer a busca pela verdade hermenêutica. Se o operador do Direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus (faça-se justiça ainda que o mundo pereça).
Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. “Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá à norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo”.
Se o falecido, em vida, deixou transparecer ao companheiro que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. É indiscutível que em razão da convivência estável vários assuntos são discutidos e resolvidos e ninguém mais indicado que o companheiro para poder se manifestar a respeito. Transferindo-se as mesmas regras da união heterossexual para a homossexual, a figura do companheiro surge como legitimada e indiscutível sua titularidade. É notório que ainda é tímida a veiculação da campanha de esclarecimento de doação de órgãos no Brasil para apontar as providências a serem tomadas pelos familiares. Muitas pessoas imaginam que a doação é ato voluntário do paciente, englobada no princípio da autonomia de sua vontade. Uma vez que ficam proibidos o apelo público para doação para pessoa determinada, assim como o de arrecadação de fundos para o financiamento de transplante ou enxerto, os órgãos de gestão nacional devem fazer as campanhas de conscientização e esclarecimento a respeito da doação de órgãos, evidenciando a legitimação do companheiro homossexual.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, sócio fundador do escritório Eudes Quintino Sociedade de Advogados